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“Ilha Grande”: webdoc and social purpose

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A função social do documentário foi decisiva para evolução do campo como uma mídia específica, com suas práticas de produção e seus elementos próprios de linguagem. Kate Nash (2014) sugere que a principal continuidade entre a tradição de documentários e a nova produção de documentários interativos acontece justamente pelo exercício dessa função social, mais do que pelas convenções do gênero ou práticas de produção.


Parte dos documentários interativos se apresentam como projetos com propósitos claros de registrar ou preservar uma história ou patrimônio cultural; engajar o público em debates e ações de interesse comum; influenciar o debate e a opinião pública.

Nós, do Bug404, vamos publicar aqui uma série de posts sobre projetos dessa natureza que usam narrativas interativas e multiplataformas. Vamos começar aqui mostrando como o propósito social foi decisivo para a configuração do webdoc “Ilha Grande: cada praia uma ilha, cada ilha, uma história” (2015), que se vincula ao Turismo de Base Comunitária e foi selecionado para o Rio WebFest 2016.

“Ilha Grande” é um webdocumentário simples que traz histórias vividas por personagens nas diversas comunidades pesqueiras das praias ao redor da Ilha Grande, no estado do Rio de Janeiro, Brasil. A narrativa interativa é baseada em vídeos que foram publicados como uma websérie na página do Facebook com ótimos resultados de audiência. A arquitetura da narrativa é bem simples: um menu interativo que mostra o mapa da Ilha e suas praias. Ao escolher cada praia, o interator (usuário) tem acesso a duas páginas: uma com um vídeo sobre um personagem e uma história local e outra com dicas e informações de opções de serviços de hospedagem e alimentação de turismo de base-comunitária. Dessa forma, a plataforma é um convite para o interator buscar a experiência com esse tipo de turismo na Ilha Grande.

“Ilha Grande” foi dirigido por mim (André Paz) e realizado com baixíssimo orçamento pelo Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS) da COPPE, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dentro de um projeto de divulgação científica financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) – o que por si mesmo já destaca um propósito muito além do exclusivamente estético. O site do projeto (ilhagrande.website) apresenta o contexto mais amplo no qual se insere o webdoc. O webdoc foi concebido em função do escopo de ações e propósitos do projeto e vinculado à realização de um projeto social maior: “Voz Nativa”, realizado pela ONG Alternativa Terra Azul, em parceria com o LTDS, financiado pelo Edital do Programa Petrobras Desenvolvimento e Cidadania. Só compreendendo esse contexto e a estratégia maior de comunicação para esclarecer as escolhas narrativas do webdoc “Ilha Grande”.

A Ilha Grande é um dos principais destinos turísticos no estado do Rio de Janeiro, em função de suas praias, matas e áreas de proteção ambiental. Seu território é quase todo de áreas protegidas. O interior da Ilha é praticamente desocupado e as pequenas comunidades ficam nas praias ao redor. Praticamente todo deslocamento entre as praias é feito por trilhas ou por barcos – em sua grande maioria, pesqueiros. O turismo é a principal atividade econômica da ilha. As atividades e práticas de consumo do turismo de massa predominam e, em geral, excluem a população local dos principais postos de trabalho, ignoram a história e cultura das comunidades e trazem impactos ao meio-ambiente. Os principais empreendedores são pessoas que vieram ou ainda vivem fora da Ilha. Em oposição, algumas iniciativas de base comunitária – campings, pousadas, restaurantes – espalhadas pelas praias, se apresentam como alternativas mais sustentáveis, que valorizam a cultura local e cultivam a convivência entre turista e hospedeiro além da interação estritamente comercial. Em função dos vínculos comunitários, essas iniciativas acabam sendo mais preocupadas com as consequências sócio ambientais. Além disso, trazem os empreendedores locais para o centro de tomada de decisões políticas das comunidades. Essas iniciativas encarnam os princípios do turismo de base comunitária (TBC).

O projeto geral “Ilha Grande” (LTDS) e o Voz Nativa apoiavam as iniciativas de base comunitária. Por dois anos (2014/2015), este último realizou uma série de ações, como: um jornal comunitário feito pelos jovens – chamado Voz Nativa; cursos e oficinas, voltados para o empreendedorismo no turismo da Ilha; eventos culturais e campanhas; publicação de livros e promoção de debates. No âmbito do Voz Nativa, o projeto “Ilha Grande” era a primeira etapa do desenvolvimento do documentário interativo como uma tecnologia social para apoiar às iniciativas de turismo de base comunitária no entorno de áreas de proteção ambiental e difundir técnicas para replicá-la. As iniciativas de base comunitária têm inúmeros desafios, como o fato do TBC não ser uma forma de turismo reconhecida na Ilha Grande, nem pelo Brasil. Esse cenário colocava a necessidade de trazer visibilidade para o tema do TBC e para as inciativas da Ilha Grande para os próprios moradores da Ilha e para os turistas. O webdocumentário tentou contribuir nesse sentido, o que colocava a necessidade de atingirmos um público mais amplo de possíveis interessados na experiência de turismo de base comunitária.

Nesse contexto, a equipe optou por não tratar diretamente sobre a temática do turismo de base comunitária nos vídeos, mas por contar histórias vividas nas diversas praias. Por outro lado, o turista que valoriza essa forma de turismo busca a convivência, o compartilhamento e troca de experiências, a cultura e história local. Assim, “Ilha Grande” traz divulga histórias e personagens cotidianos das praias, como uma forma de incentivar o fortalecimento da cultura local e apoiar, mesmo que indiretamente, as iniciativas de base comunitária. A ideia era mostrar encantos da Ilha, além da beleza de suas praias nos cartões postais. Destacar uma experiência a ser vivida, mais do que uma paisagem a ser consumida. A opção pelo uso prioritariamente de vídeo se justificava pela possibilidade de ser compartilhável e atingir o maior número de pessoas dentro do público-alvo: turistas, população local da Ilha Grande, interessados em projetos similares. Os vídeos trabalham uma estética sensível ao ritmo e temáticas do cotidiano, buscam assim estar em sintonia análoga à relação de convivência entre turistas e locais, preceito fundamental do turismo de base comunitária.

Foi dessa forma que tentamos conjugar o propósito social com uma autonomia que preservasse as possibilidades estética para além da mera propaganda. O webdoc fazia parte de uma estratégia que visava contribuir para o fortalecimento da cultura local e da auto-estima das comunidades, promover o debate sobre turismo de base comunitária e apoiar as iniciativas de base comunitária. Por um lado, os números de visualizações e compartilhamentos nas mídias sociais e o retorno direto no cotidiano dos moradores da Ilha nos levaram a sentir realizados no sentido dos impactos sociais do projeto. Por outro, da potência estética, também temos nossa opinião, mas preferimos deixar aqui em aberto para os leitores fazerem suas próprias experiências e avaliações.

 

Nash, K. (2014) What is interactivity for? The social dimension of web-documentary participation. Continuum: Journal of Media & Cultural Studies. 37-41.

André Paz
André Paz é professor da UNIRIO, pesquisador, diretor e produtor. Faz pós doutorado sobre narrativas interativas (UFRJ) e dirige projetos de documentário interativo.