Artigo sobre o surgimento dos documentários interativos com propósitos sociais. Discute como as narrativas interativas se apresentam vinculadas às funções e propósitos sociais do projeto.
A difusão das mídias digitais e a consolidação da internet trouxe uma série de implicações para cultura digital e novas possibilidades narrativas, como já descritas e analisadas por autores que se tornaram referências no assunto (Aarseth, 2003; Landow, 2005; Manovich, 2001; Murray, 1999; Scolari, 2013; Jenkins, 2006 e 2012). Um flanco de incorporação dessas possibilidades acabou se configurando e sendo reconhecido nos últimos anos por termos como narrativas interativas não ficcionais, documentários interativos, webdocumentários, conforme já também mapeado e analisado (Aston e Gaudenzi, 2012; Gaudenzi, 2013a e 2013b; Gifreu, 2010, 2013, 2014, 2015; Nash, 2014 e 2016). Parte dessa produção está focada em investigar temáticas e promover mudanças sociais ao incorporar à narrativa as novas ferramentas e possibilidades interativas e transmídias, em sintonia com a cultura participativa desse novo ambiente (Jenkins, 2006, 2013).
Os documentários sempre tiveram temáticas em grande medida vinculadas aos problemas e questões sociais. Mesmo que não tratem diretamente de problemas sociais amplamente reconhecidos, os diretores e produtores acabam encontrando justificativas sociais para seus projetos. Kate Nash (2014), entretanto, vai mais além nesse sentido. Ela aponta como a função social do documentário foi importante para evolução do campo como uma mídia específica, com suas práticas de produção e seus elementos próprios de linguagem. Em What is interactivity for? The social dimension of web-documentary participation, Nash (2014: 2) sugere que a continuidade entre a tradição de documentários e a nova produção de documentários interativos acontece justamente pelo exercício dessa função social, mais do que pelas convenções do gênero ou práticas de produção. O potencial de conectar pessoas em torno de uma questão social se apresenta como um elemento comum, dentre tantas diferenças que se sobressaem entre documentários audiovisuais – também chamados de lineares – e documentários interativos. Seguimos aqui essa orientação, focados, entretanto, naqueles projetos onde a função social se apresenta como um propósito claro do projeto com desdobramentos para sua produção e narrativa.
Nash (2014: 6-9) reconhece para os documentários interativos as mesmas funções sociais apontadas por Corner (2002) e Renov (1993) para o documentário audiovisual: i. Registrar, revelar ou preservar: os documentários interativos podem ser bancos de dados ou coleções estruturadas de itens que podem ser acessadas e organizadas de diversas formas, o que potencializa a convergência entre documentário e documento; ii. Engajamento cívico: os documentários interativos podem promover a construção de comunidades de interesses comuns e incentivar o debate e ações em determinado sentido sobre questões; iii. Persuasão: os documentários interativos podem exercer papel de convencimento no discurso e opinião pública sobre determinadas questões, o que pode ser potencializadas pelas possibilidades de engajamento do público.
A interatividade transformou as práticas de produção do cinema documentário em todas as suas etapas, da criação à recepção. Ao invés da tela, o espectador encontra uma interface interativa, passando a ser reconhecido pelos teóricos como interator. No contexto da cultura participativa e da convergência (Jenkins, 2006 e 2012), essa pequena modificação trouxe para os documentários interativos novas possibilidades para o exercício das funções sociais, como já apresentado e analisado por alguns autores (Nash (2014), Gifreu (2015), Zambrano e Gifreu (2016)). Algumas dessas produções, inclusive, se tornaram as mais reconhecidas internacionalmente no campo dos documentários interativos.
Hollow: An interactive documentary (2012), de McMillon, por exemplo, se tornou um dos documentários interativos mais reconhecidos ao investigar a emigração da população de condados dos Estados Unidos. Mais especificamente, o projeto apresenta uma narrativa interativa sobre o condado de MacDowell, na West Virginia, que tem uma população e 20 mil habitantes, quando já teve 100 mil na década de 1950. A partir de colagens interativas surpreendentes (acionadas por scroll), Hollow utiliza vídeos, infográficos, fotografias e imagens de época para explorar o universo dos personagens e histórias locais, articuladas com campanhas em mídias sociais e campanhas para doação. Bear 71, de Jeremy Mendes e Leanne Allison, por sua vez, coloca em questão a relação dos humanos com a vida selvagem ao investigar a vigilância dos animas. O projeto nos envolve em uma narrativa interativa ficcional baseada na história real de um urso fêmea que viveu sob constante monitoramento em área de conservação entre 2001 e 2009, utilizando a infinidade de imagens das câmeras de vigilância.
O documentário interativo com maior reconhecimento internacional, Highrise, de Katerina Cizek, ilustra os casos que não apenas investigam questões sociais com apresentam explicitamente um propósito social. Highrise é um conjunto de produções interativas sobre a temática de moradias em grandes edifícios: The Thousand Tower (2009), Out of my Window (2010), One Millionth Tower (2011), A Short History of Highrise (2014), Universe Within. Digital Lives in the Global Highrise (2015). Como apresenta a home do projeto:
“Highrise explores vertical living in the global suburbs. It’s multi-year, many-media collaborative documentary experiment at the National Film Board of Canada, directed by Katerina Cizek, and produced by Gerry Flahive. Since its launch in 2009, Highrise has generated many projects, including mixed media, interactive documentaries, mobile productions, live presentations, installations and films. Collectively, the projects — and the ones to come — have both shaped and realized the Highrise vision: to see how the documentary process can drive and participate in social innovation rather than just to document it; and to help re-invent what it means to be an urban species in the 21st century.”
O projeto apresenta de forma clara que seu propósito social é desencadear e participar de processos de inovação social, além do registro e documentação. De fato, os documentários interativos são usualmente situados além do paradigma da representação. Além dos já conhecidos modos de representação apontado por Bill Nichols na Introdução ao Documentário (2001) (expositivo, observativo, participativo, reflexivo, performático e poético), os documentários interativos passaram a ser reconhecidos pelos seus modos de interatividade, organizados por Sandra Gaundenzi (2013a): hipertextual, conversacional, participativo e experimental. Esses modos dizem respeito às formas como o interator pode interagir com a narrativa. No modo hipertextual, a narrativa disponibiliza conteúdos pelos quais o interator pode navegar. Ele pode escolher seu percurso dentro dos caminhos pré-determinados pela narrativa. Pode navegar entre os hiperlinks, mas não interferir no conteúdo da obra. Já o modo conversacional depende do sistema informático responder a cada gesto do interator. A conversa metafórica se estabelece na troca constante entre interator e obra na narrativa, de maneira que o interator pode intervir no conteúdo da obra e atuar criativamente. Quando o interator pode enviar seu próprio conteúdo midiático, passamos ao modo participativo, onde o interator intervém e contribui para o conteúdo da obra. Já o modo experiencial integra as mídias geolocalizadas (locative media), de maneira que a interação considera os parâmetros do espaço físico, normalmente através da utilização do GPS (Global Positioning System). Os modos de interatividade desencadeiam uma nova gama de possibilidades para as narrativas interativas, das quais algumas se destacaram no exercício da função social.
Os modos de interatividade de Gaundenzi (2013a) não são auto excludentes. Obras, como Highrise, combinam mais de um modo. Em A Short History of Highrise, o interator pode navegar por uma narrativa interativa formada por conteúdos audiovisuais em forma de um hipertexto sobre a história das moradias em grandes edifícios no mundo. Já em Highrise, Out my window (2012), ele pode visitar virtualmente 13 apartamentos de grandes torres urbanas localizados em cidades como Montreal, São Paulo, Johannesburg e Chicago. Ao escolher São Paulo, por exemplo, o interator navega por uma série de vídeos e imagens do apartamento de Ivaneti, moradora de uma ocupação no Bairro da Luz, e coordenadora do movimento sem-teto do centro de São Paulo. Além de percorrer estes diferentes ambientes, o interator também pode submeter suas próprias imagens e textos sobre sua experiência em grandes prédios urbanos. Estas imagens são acessíveis de diferentes formas, por temas, janelas ou cores.
Em outras obras, o conteúdo participativo tem um volume maior e uma importância mais determinante na constituição do conteúdo da narrativa. Esses trabalhos baseados no modo participativo são chamados então de colaborativos. É o caso do conhecido 18 Days in Egypt (Jigar Mehta e Yasmin Elayat, 2011) que se auto define como um “documentário colaborativo sobre a revolução” da primavera árabe no Egito. O conteúdo da obra é o conjunto de mídias enviado por pessoas que viveram os 18 dias de turbulência politica e social no Egito – em grande parte realizado durante os acontecimentos. A mobilização dos participantes entra como um componente fundamental desses projetos. Para viabilizar a criação do conteúdo, o processo produtivo precisa criar uma comunidade de participantes ou engajar participantes de um comunidade pré-existente. O conteúdo da narrativa desses documentários interativos requer, em grande medida, a existência de outras ações de engajamento no processo produtivo.
Gifreu (2015) e Zambrano e Gifreu (2016) focam suas análises nas práticas participativas e colaborativas em documentários interativos. Os autores mostram como essas práticas também estão presentes em documentários audiovisuais recentes – não interativos – como Life in a Day (2001), de Mc Donald, Dormíamos, despertamos (2012), de Domigo, Quiñones, Hirota e Linares, 100 Miradas (2013), de Borregón. E apontam alguns casos conhecidos de documentários interativos colaborativos, como Mapping Main Street (2010), de Oehler, Shapins e Burns, Question Bridge: Black Males (2011), de Johnson, Willis, Ross e Sinclair, e One For Ten (2013), de Francome e Pizzey. Os autores, entretanto, estão mais focados no potencial colaborativo de documentais interativos com um perfil mais ativista[1]. Zambrano e Gifreu (2016) discutem alguns casos de documentários interativos que se converteram em um modo de denúncia ou mudança social, em função da originalidade na forma de se conectar ao seu público e incentivar a ação dos participantes, o empoderamento e a mudança social: The Dream is Now (2013), de Guggenheim, 0 responsables (2013), de Badía, Fabra, Peris y Signes, One Millionth Tower (Highrise, 2013) e Proyecto Quipu, de Court, Lerner e Melo. Proyecto Quipu e The Dream is Now promovem a participação de pessoa anônimas e vítimas de injustiças sociais que não têm voz nos meios de comunicação tradicionais. Já One Millionth Tower e 0 responsables levantam um processo reflexivo.
The Dream is Now, por exemplo, é um documentário colaborativo e multiplataforma voltado para apoiar o projeto de lei Dream (Development, Relief and Education for Aliens Minors Act), que permite aos jovens imigrantes nos EUA adquirem a nacionalidade norte-americana através de estudos universitários ou do serviço militar. O projeto parte de um documentário linear audiovisual de 30 minutos que conta a história de 4 desses jovens e uma plataforma na web que difunde as histórias e convida os jovens a expressarem suas opiniões. Em paralelo, o projeto realizou uma campanha nas escolas e universidades para conscientização e levantamento de assinaturas para apoiar a reforma. Pela plataforma, o interator pode solicitar uma projeção com debate do documentário, escrever para congressistas, fazer o upload de vídeos, fotos, poemas, expressar opinião. Todos esses recursos estão conectados com as pessoas que promovem o projeto de lei.
Proyecto Quipu, por sua vez, denuncia a esterilização forçada de 2 mil pessoas durante uma política de esterilização em massa, não reconhecida oficialmente, de mais de 300 mil mulheres e 20 mil homens nas classes mais pobres do Peru nos anos 1990, durante o governo de Alberto Fujimori. A grande inovação do projeto é justamente a forma como conseguiu levantar os testemunhos das vítimas, em grande maioria mulheres e indígenas, e desencadear ações integradas em busca de justiça. Ainda em andamento, o projeto oferece uma linha telefônica para a qual as vítimas podem ligar de forma gratuita e fazerem seus testemunhos de maneira anônima. Esse recurso foi fundamental já que a maioria das mulheres falava idiomas Quechua e, inserida em uma tradição oral e indígena, tinha dificuldades de se expressar de forma escrita ou através de vídeos. Os registros sonoros são disponibilizados na página web do documentário interativo, onde interatores podem escutar os registros sonoros e também gravar suas respostas. Como destaca Zambrano e Gifreu (2016), o projeto funciona como uma caixa de ressonância das demandas das comunidades locais e suas vítimas para o mundo. Para isso, o projeto conta com uma ampla divulgação pelas mídias sociais e uma campanha extensa e delicada para conscientização, articulação de uma rede nacional e levantamento dos testemunhos através do trabalho de ativistas nas inúmeras localidades. Essas ações face a face nas comunidades foram imprescindíveis para o desenvolvimento do projeto. O resultado foi no sentido da incorporação desses sujeitos excluídos do debate nacional e do empoderamento dos mesmos na luta por justiça.
As ações face a face ganham também importância nevrálgica em One Millionth Tower. O projeto foi desenvolvido com moradores do subúrbio de Toronto ao longo de dois anos. A equipe trabalhou em oficinas com urbanistas, arquitetos, designers e programadores de informática, onde os moradores foram convidados a imaginar como gostaria que fosse o entorno e áreas comuns dos edifícios. One Millionth Tower é o primeiro documentário 3D de código aberto, onde o interator pode navegar por esses projetos imaginados. O projeto digital aconteceu integrado a um conjunto de ações de restauração do patrimônio, reforma de zonas deterioradas e até cursos de formação digital e alfabetização de jovens.
Os casos analisados Gifreu (2015) e Zambrano e Gifreu (2016) destacam como os documentários com propósitos sociais claros – e, por vezes, objetivos – constroem narrativas interativas integradas a um conjunto mais amplo de ações e produtos transmídias. Gifreu (2015) analisa três obras que abordam o tema da desigualdade de gênero no Séc XXI através de uma narrativa transmídia e multiplataforma. Half the Sky: Turning Oppresion into Oportunity for Women Worldwide (2012), de Nicholas Kristof e Sheryl WuDunn, denuncia diferentes formas de opressão sofridas pela mulher ao redor do mundo. Half The Sky é uma narrativa transmídia que se origina em um livro (Half the Sky, 2009), que trata do problema do negócio de escravas sexuais no mundo e se expande para outras plataformas, como série de televisão, jogos no Facebook, website e material educativo, todas integradas em uma estratégia para atingir os objetivos do movimento (Gifreu, 2015: 1166). PRiya’s Shakti (2014) conta a história de uma mulher vítima de estupro, uma história ficcional realizada a partir de um caso real de estupro seguido de morte de uma menina em um ônibus na Índia. O projeto se estende por histórias em quadrinhos, instalações públicas, aplicativos em realidade aumentada, website e mídias sociais.
Para analisar os documentários como ferramenta de mudança social, Gifreu (2015: 1169) apresenta um modelo de análise por três categorias. A primeira, chamada de Gênero Documentário, busca compreender quais são os temas das obras e os elementos narrativos da realidade que utiliza (documentário audiovisual, interativo, entrevistas, registros sonoros, ações). A segunda – Narrativa Transmídia – estabelece quais os meios e plataformas utilizadas (Web, Tv, Suportes ópticos, instalação, multiplataforma) e quais os tipos de participação do usuário (interação, colaboração, participação, participação em oficinas). A terceira categoria diz respeito à Articulação das Mudanças Sociais e abarca questionamentos sobre: as mudanças que o projeto pretende impulsionar (mudanças estruturais, mobilização cidadã, pressão sobre organismos, luta contra desigualdades e etc.); as ações e atividades que são realizadas nesse sentido (promoção via mídias sociais, ações de marketing, manifestações e reuniões e etc.); as respostas e graus de envolvimento por parte da audiência (navegação, interação, colaboração, participação e etc.); os impactos nos indivíduos, coletivos, organismos e instituições; e os resultados (mudanças, criação de redes, sensibilização da opinião pública e etc.) Por este modelo, Gifreu analisa os três casos e constata, entre outras coisas, a preocupação central desses projetos em emocionar e sensibilizar a opinião pública para provocar a ação das pessoas vinculadas às causas dos projetos. .
O modelo de Gifreu (2015) é bastante útil para mapear e compreendermos a variedade de questões, ferramentas e possibilidades narrativas para os documentários atual. Gifreu (2015), na verdade, apresenta os conceitos de documentário audiovisual, interativo e transmídia como um encadeamento sequencial, onde o documentário transmídia é o último estágio. Nesse sentido, por exemplo, Highrise é classificado como um documentário transmídia (Gifreu, 2015). Aqui, entretanto, não estamos focados nessas classificações, pois nos interessa ver os documentários interativos mais como entidades relacionais (Gaundenzi, 2013) – como exploramos no item a seguir –, que podem ter os formatos mais diversos. Antes, nos perguntamos como os documentários interativos concebem suas narrativas dentro de projetos com propósitos sociais que integra múltiplas ações e plataformas. Cabe compreendermos melhor a narrativa interativa como resultado de uma escolha interdependente das outras ações e do propósito do projeto, e não mais como um processo criativo autônomo.
Em Strategic impact documentary: Contexts of production and social intervention, Nash (2016) aponta para o surgimento de uma nova forma de produzir documentário que visa mudanças sociais, ao integrar o documentário audiovisual e linear em uma estratégia de comunicação que articula diferentes ações e práticas transmídias. O documentário audiovisual passa a ser apenas um elemento na estratégia de comunicação geral de projeto, que tem mídias sociais, campanhas, websites, petições online, materiais escritos, informativos, educativos, promocionais, eventos, atividades de lobby, como uma espécie de narrativa transmídia. O conjunto de ações tem propósitos claros que visam impactos e resultados. O crescimento dessa modalidade está associado a uma série de fatores, como o declínio dos fundos tradicionais para produção de documentários e o aumento dos fundos que incentivam projetos com esse viés. Os documentários interativos parecem viver um processo análogo. O foco deste artigo está em torno de como os documentários interativos incorporam as novas possibilidades narrativas enquanto são incorporados em projetos mais amplos e com propósitos sociais. Nesse sentido, fazemos o convite para recuarmos um pouco e buscarmos uma perspectiva mais teórica que possa esboçar novas questões.
Dispositivo e Estratégia
A incorporação das possibilidades interativas em estratégias de comunicação impõe a necessidade de uma reconsideração estética. Nesse sentido, este ensaio faz parte de uma linha de investigação que reflete sobre a possibilidade de uma estética relacional para narrativas interativas, conforme já explorado em Paz e Salles (2013 e 2015). As reflexões incorporam contribuições teóricas do campo dos estudos de documentário às referências que já se estabeleceram no debate sobre narrativas interativas (Nash 2014 e 2016; Gifreu 2013, 2014 e 2015; Gaundenzi 2013a e 2013b), mas as situa no contexto mais amplo das relações humanas a partir de autores como Vilém Flusser (2002a, 2002b, 2003, 2007, 2008). A perspectiva da estética relacional para documentários interativos se constrói como uma redescrição criativa da proposta de Bourriaud (2009).
Quando olhamos para os documentários interativos pela perspectiva da estética relacional, as práticas e formas de interação, relação e encontros se destacam. Como aponta Bourriaud (2009: 12), as experimentações criativas podem fornecer possibilidades férteis para se criar novas formas de relação no mundo, que se contraponham à padronização e previsibilidade das relações humanas, inseridas nas dinâmicas de espetacularização, mercantilização e profissionalização da vida cotidiana. As obras são vistas como um processo de experimentação, mais do que obras prontas e acabadas, que propõem dispositivos de interação e ensejam a possibilidade de novas relações. Não se trata mais, entretanto, de projetos utópicos e da reconstrução totalizante das formas de relação da sociedade, mas de oferecer pequenas possibilidades de modificações concretas e circunscritas. A possibilidade de uma arte relacional consiste em tomar como horizonte teórico a esfera das relações humanas e seu contexto social e não a afirmação de um espaço simbólico autônomo.
Por essa perspectiva, os documentários interativos apresentam continuidades dos documentários de dispositivo, que concebem e experimentam diferentes formas de interações entre os elementos de produção do documentário como um processo criativo (Paz e Klinger, 2011). No Brasil, Eduardo Coutinho veio a se tornar talvez a maior referência desses documentários.[2] Jogo de Cena (2007), por exemplo, teve uma forma específica de convidar pelos jornais mulheres a contar suas histórias, diante da equipe de filmagem, no palco de um teatro. Alguns desses depoimentos foram reinterpretados por atrizes famosas e anônimas. E todos os depoimentos foram editados alternadamente, estabelecendo um jogo com os espectadores: quais personagens estariam contando histórias próprias e verdadeiras e quais seriam fictícias ou representadas? Mais do que representar as pessoas como elas realmente são ou narrar histórias verdadeiras de suas vidas, realidades pré existentes ao documentário, Coutinho se interessa pela interação performática de suas personagens agenciadas pela sua forma específica de dispor os elementos de filmagem – seu dispositivo.
Essa forma de documentário audiovisual e linear não prioriza a narrativa de uma história ou a representação de uma realidade pré existente às filmagens. Antes, ela produz as realidades das quais fala a partir da realização de um dispositivo específico, elaborado para o projeto em questão que estabelece um arranjo singular de elementos técnicos, discursivos, organizacionais, estéticos[3]. Esses projetos promovem uma espécie de agenciamento lúdico das pessoas em uma forma singular – específica para cada projeto – e eventual de interação com os elementos da realização do documentário (Câmera, equipe de produção, o diretor, ambiente de filmagem, cenografia, forma de abordagem dos participantes, roteiro de entrevistas). O filme que o espectador assiste é uma narrativa construída a partir das experimentações do dispositivo, resultado em grande medida dos efeitos e afetos por ele desencadeados. O processo criativo não se limita, portanto, ao processo da construção da narrativa nas etapas de roteirização ou montagem, mas se estende também à configuração do arranjo entre os diversos elementos de produção. A autoria não se realiza exclusivamente no discurso, mas também no âmbito da construção do dispositivo. O documentário não é uma narrativa sobre um tema ou uma história, mas uma narrativa sobre experimentações concretas de uma forma específica e eventual de agenciar pessoas em um projeto interativo de documentário audiovisual e linear. Um documentário dessa natureza, entretanto, é sempre uma aposta, um dispositivo com alto grau de indeterminação e aberto ao acaso. A poética do dispositivo depende da sua fertilidade, ou seja, de sua potência para desencadear dinâmicas próprias e autônomas com efeitos e afetos imprevisíveis. Essa vitalidade passa a ter uma importância fundamental no resultado estético no documentário enquanto filme.
Vemos os documentários de dispositivo como uma forma específica de pensamento imagético[4], no sentido proposto por Flusser (2002, 2007, 2008), inserido em um novo regime de poder marcado pelos programas, aparelhos, funcionários, ferramentas e usuários. As novas formas de pensamento trabalham com recursos textuais ou imagéticos a partir de práticas de produção que ensejam novas experiências (Paz e Salles, 2013,2014; Paz, 2013). Os dispositivos dos documentários são criativos, ou seja, grávidos de experiências não previsíveis que se diferenciam das experiências e relações programadas. O risco do dispositivo é reproduzir as relações de poder da sociedade e transformar os participantes em meros funcionários de um aparelho que reproduz os programas vigentes. Há uma abertura ao acaso e a indeterminação, assim como um acolhimento e cultivo dos encontros com a alteridade. Em sintonia com o universo nômade esboçado por Flusser, os documentários de dispositivo enredam interações e relações concretas na esperança de provocarem ou apontarem novas formas de relações sobre determinados temas em ambientes circunscritos.
Os documentários interativos podem ser vistos como novas formas de documentários de dispositivo (Paz e Salles, 2013; 2015). A diferença fundamental, entretanto, é que, em função da interatividade, a obra é incorporada ao dispositivo. Os documentários interativos pela perspectiva da estética relacional são processos de agenciamento de interatores para uma experiência de duração determinada. O processo produtivo não é linear como nos documentários de dispositivo, onde as interações acontecem apenas nas filmagens. A obra é um processo de interação que entrelaça e dissolve as fronteiras entre as noções de produção, distribuição e recepção. Não se trata mais de uma narrativa fechada e determinada pela autoria, exercida pelo diretor e montador, sobre as experimentações desencadeadas pelo dispositivo. Narrar e interagir se mesclam. A narrativa interativa requer algum grau de abertura, assim como concede algum grau de participação na autoria ao interator.
Mais as continuidades prevalecem. Os documentários interativos configuram suas formas específicas e singulares de organizar seus elementos discursivos, tecnológicos e culturais
Como uma forma interativa de enredar os interatores e participantes em tramas e histórias que representam um tratamento criativo da realidade. Não apenas retratam histórias e realidades anteriores ao projeto, mas sobretudo convocam os interatores a experimentar e contruir novas histórias. Partem de uma aposta e preservam, em grande medida, uma abertura à indeterminação. A fertilidade continua sendo uma propriedade fundamental, expressão de sua potência para desencadear dinâmicas próprias e autônomas com efeitos e afetos imprevisíveis. Não é por outra razão que Gaudenzi (2013a e 2013b) propõe usarmos o termo living documentary, pois estamos falando de entidades relacionais com dinâmicas próprias que acontecem “in real time” (2013b: 25).
“What Living Documentaries allow us to do is to look at interactive docuemntaries as dynamic entities that co-emerge while they live though the interactions with internet, their users, subject, producers, or any acting entity. They put the emphasis on becoming, rather than explaining. (…) The message is not in the form, it is in the interaction.” (Gaudenzi, 2013b: 26)
Como as palavras de Gaudenzi ilustram, os documentários interativos trazem naturalmente uma ênfase no futuro. Nos termos que propomos, o dispositivo criativo é uma aposta nos processos que desencadeia, nos acasos improváveis que pode acolher (Paz e Salles, 2013). Os documentários interativos “(…) become interesting when we build them in such a way that they can have a life of their own. They acquire a bigger potential to provoke change when they embrace some levels of serendipity”. (Gaudenzi, 2013b: 27)
Há uma espécie de propensão natural dos documentários interativos trazerem propósitos para os projetos, exteriores à investigação estética. Por um lado, herdam a função social dos documentários. Por outro, a narrativa interativa e o engajamento do interator remetem para os impactos decorrentes, sobretudo no ambiente da cultura participativa que se instaurou na internet – seu ambiente desde a origem. Não há exemplo mais ilustrativo que Highrise que coloca em questão a vida em arranha-céus através de um engajamento criativo que imagina mudanças concretas. Pela perspectiva relacional, enreda interatores e vislumbra pequenas modificações – inovações sociais – no horizonte das relações humanas, em seu contexto social.
Mas o universo incipiente e futuro dos documentários interativos e transmídia não se reduz a Highrises. Com o surgimento e desenvolvimento de estratégias de projetos de impacto, como nos referimos anteriormente, as narrativas interativas do campo passam a ser integradas com outras ações que visam impactos e resultados concretos. Com a disseminação de fundos que cobram impactos e resultados cada vez mais definidos, medidos e alcançados, não é difícil imaginar que as estratégias cada vez mais serão orientadas pela busca de produtividade e eficiência na direção das metas. Um dos lugares chaves para mudança apontado por Nash (2016) é a interdependência entre a mensagem do documentário e as metas da campanha. Se falamos que a mensagem do documentário é seu meio, qual autonomia é reservada para o documentário interativo e sua narrativa? Esse cenário para sinalizar desafios à noção tradicional de documentário como investigação artística ou jornalística.
Se olharmos pela perspectiva aqui apresentada, qual o espaço de autonomia para os dispositivos preservarem o acaso e a indeterminação necessários para sua fertilidade? Qual a possibilidade de se orientar por novas experiências e não pela repetição de relações programadas e padronizadas pela sociedade? Dificilmente essas perguntas poderão ser respondidas de forma geral e a priori. Nesse sentido, o que nos cabe investigar é sobre os processos de negociações possíveis entre o cultivo da fertilidade e indeterminação e a lógica da eficiência estratégica. Quais as questões em jogo na concepção da narrativa interativa de um documentário quando ele está integrado em uma estratégia com um propósito social definido? Se consideramos a estratégia como um dispositivo de produção de metas sociais qual espaço para o documentário interativo ser um dispositivo criativo? Certamente essas questões vão muito além deste ensaio. Buscaremos aqui apenas narrar um caso onde vivemos as negociações possíveis entre o cultivo da fertilidade e a lógica da eficiência para concepção e desenvolvimento da narrativa interativa.
Cada ilha é uma história
“Ilha Grande: cada praia uma ilha, cada ilha, uma história” (2015), de André Paz[5], é um documentário interativo que traz histórias vividas por personagens nas diversas comunidades pesqueiras das praias ao redor da Ilha Grande, no estado do Rio de Janeiro, Brasil. A narrativa interativa é baseada em uma série de vídeos que foi publicada também de forma sequencial nas mídias sociais. A arquitetura da narrativa é bem simples, com um menu interativo que mostra o mapa da Ilha e suas praias. O modo de interatividade é o hipertextual. Ao escolher cada praia, o interator tem acesso a duas páginas: uma com um vídeo sobre um personagem e uma história local e outra com dicas e informações de opções de serviços de hospedagem e alimentação de turismo de base-comunitária. A plataforma é um convite para o interator buscar a experiência do turismo de base comunitária. Como apresenta no próprio site: “Ilha Grande: cada praia, uma ilha; cada ilha, uma história” traz histórias vividas nas diversas praias e comunidades da Ilha Grande. Por outro lado, oferece de forma interativa dicas de pousadas, campings e restaurantes onde o internauta pode viver como turista uma experiência mais próxima das comunidades da Ilha.” Através de um menu secundário, o interator tem acesso às informações e vídeos sobre três guias turísticos que também apoiam esse tipo de experiência turística. Os vídeos trabalham uma estética sensível ao ritmo e temáticas do cotidiano, buscam assim estar em sintonia análoga à relação de convivência entre turistas e locais, preceito fundamental do turismo de base comunitária.
Essa narrativa interativa simples foi concebida dentro de uma estratégia mais ampla. “Ilha Grande” foi realizado dentro do escopo de ações e propósitos de dois projetos, com os recursos financeiros e humanos que os mesmos disponibilizavam. O documentário interativo era um dos produtos de um projeto de extensão do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS) da COPPE, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Este, por sua vez, aconteceu vinculado à realização de outro projeto maior: “Voz Nativa” (voznativa.eco.br), fruto da parceria do LTDS e a ONG Alternativa Terra Azul, financiado pelo Edital do Programa Petrobras Desenvolvimento e Cidadania.
Por dois anos (2014/2015), o Voz Nativa realizou uma série de ações de comunicação que visavam apoiar o turismo de base-comunitária na Ilha Grande e o protagonismo dos jovens locais nesse processo. “Ilha Grande” foi realizado dentro do escopo dessas ações: edição de um jornal comunitário feito pelos jovens da Ilha, chamado Voz Nativa; o oferecimento de uma série de cursos e oficinas, voltados para o empreendedorismo no turismo da Ilha e o incentivo ao turismo de base-comunitária; realização de eventos culturais e campanhas, como, por exemplo, a promoção e concurso de fotografia no Instagram que culminou com a publicação de um livro de fotografias e uma exposição; publicação de livros e a promoção de debates sobre turismo de base-comunitária e o empoderamento da população local[6]. No âmbito do Voz Nativa, o projeto de extensão visava desenvolver o documentário interativo como uma tecnologia social de apoio às iniciativas de turismo de base comunitária no entorno de áreas de proteção ambiental[7]. E propunha, ainda, o objetivo de compartilhar e difundir técnicas e conhecimentos para se reaplicar a tecnologia social. Por esse motivo, o projeto tem um website independente do webdocumentário (ilhagrande.website), que apresenta seu propósito, ações e difunde as ferramentas da tecnologia social. A partir desse propósito mais geral que visava também a possível reaplicação que foi desenvolvido o dispositivo do documentário interativo.
A Ilha Grande é um dos principais destinos turísticos no estado do Rio de Janeiro, em função de suas praias, matas e áreas de proteção ambiental. Seu território é quase todo abarcado por áreas protegidas. O interior da Ilha é praticamente desocupado e as pequenas comunidades ficam nas praias ao redor. Praticamente, não há estradas ou carros entre as praias. Todo deslocamento é feito por trilhas ou por barcos – em sua grande maioria, pesqueiros. A Ilha tem uma história de ocupação de trezentos anos que, dado o distanciamento e falta de transporte regular entre as praias, resultou em comunidades com suas próprias identidades culturais. Algumas praias, inclusive, são mais próximas econômica e culturalmente de cidades do continente, do que das outras praias da Ilha Grande, daí o jargão na ilha – “Cada praia, uma ilha” – do qual derivou o título do documentário interativo. Desde o início ficou evidente a necessidade de trabalhar essa distância entre as praias para se organizar um circuito e rede de apoio as iniciativas de base comunitária.
O turismo é a principal atividade econômica da ilha. As atividades e práticas de consumo do turismo de massa predominam e em geral excluem os locais dos principais postos de trabalho, ignoram a história e cultura das comunidades e trazem impactos ao meio-ambiente. Os principais empreendedores são pessoas que vieram ou ainda vivem fora da Ilha. Em oposição, algumas iniciativas de base comunitária – campings, pousadas, restaurantes – espalhadas pelas praias, se apresentam como alternativas mais sustentáveis, que valorizam a cultura local e cultivam a convivência entre turista e hospedeiro além da interação estritamente comercial. Em função dos vínculos comunitários, essas iniciativas acabam sendo mais preocupadas com as consequências sócio ambientais. Além disso, trazem os empreendedores locais para o centro de tomada de decisões políticas das comunidades. O conjunto de ações do Voz Nativa apoiavam o turismo de base comunitária e promoviam o empoderamento das comunidades locais e a inserção dos jovens como protagonistas das atividades.
Durante a execução do Voz Nativa, a proximidade com as iniciativas de base comunitária tornou evidente a dificuldade de tais iniciativas se comunicarem com os turistas antes da chegada dos mesmos nas praias e depois do período de visitação. O que implicava em dificuldades para comercialização sem intermediários e para divulgação “boca a boca”. Essa dificuldade é comum nos casos de TBC, mas na Ilha Grande ainda é mais presente em função do distanciamento logístico entre as praias e Abraão, porta de entrada mais comum dos turistas na ilha. Por outro lado, a proposta do TBC também não é uma forma de turismo reconhecida na Ilha Grande, nem pelo Brasil. Esse cenário colocava a necessidade de dar visibilidade para o tema do TBC e para as inciativas da Ilha Grande para os próprios moradores da Ilha e para os turistas. Grande parte das ações do Voz Nativa já trabalhava o TBC com as comunidades, mas acreditávamos que a visibilidade e reconhecimento na internet e via mídias sociais fortaleceria a confiança das iniciativas locais.
Em parcerias com uma série de pesquisadores de turismo e a equipe Voz Nativa, desenvolvemos um projeto inicial de tecnologia social que visava implementar através de uma plataforma digital uma espécie de guia virtual de turismo de base comunitária, com múltiplas camadas que, através de histórias, disponibiliza informações sobre as iniciativas e funciona como uma espécie de agência de comercialização direta entre turistas e locais, administrada pelos próprios locais com apoio de facilitadores externos. No entanto, como os recursos para realização eram escassos, o projeto de implementação na ilha Grande se limitou a divulgar histórias locais e disponibilizar algumas informações de turismo comunitário através de um documentário interativo na web. A opção pela narrativa interativa se justifica aqui por conciliar a função de arquivo e divulgação de histórias de forma quase imediata com as funções informativas e de intermediação comercial – pelo menos na proposta completa de tecnologia social. Mas desde o início estava colocada a necessidade de atingirmos um público mais amplo, o que tentaríamos pelo compartilhamento de vídeos em mídias sociais.
A equipe, entretanto, optou por não tratar diretamente sobre a temática do turismo de base comunitária nos vídeos, mas contar histórias vividas nas diversas praias. Essa opção teve o intuito de preservar uma autonomia do documentário interativo para explorar a narrativa hipertextual e persistir também como uma ação independente das demais. Por outro lado, não é qualquer turista que se interessa por uma experiência de turismo de base comunitária. O turista que valoriza essa forma de turismo busca a convivência, o compartilhamento e troca de experiências, a cultura e história local. Assim, “Ilha Grande” traz visibilidade e divulga histórias e personagens cotidianos das praias, como uma forma de incentivar o fortalecimento da cultura local e apoiar, mesmo que indiretamente, as iniciativas de base comunitária. A idéia era mostrar encantos da Ilha, além da beleza de suas praias nos cartões postais. Destacar uma experiência a ser vivida, mais do que uma paisagem a ser consumida.
O documentário interativo fazia parte de uma estratégia que visava contribuir para o fortalecimento da cultura local e da auto-estima das comunidades, promover o debate sobre turismo de base comunitária e apoiar as iniciativas de base comunitária. Nos termos propostos por Nash (2014), “Ilha Grande” visava contribuir no sentido de registrar e preservar histórias locais que vivem a ameaça hoje de desaparecimento; promover o engajamento de turistas e representantes das comunidades no Turismo de Base Comunitária na Ilha Grande; e contribuir para difusão e persuasão da importância do debate e da alternativa do TBC como uma política para o turismo em pequenas localidades perto de áreas protegidas no Brasil. Nesse sentido, enquanto narrativa interativa, ele tinha diferentes grupos de interatores como segmentos de público alvo, em função de seus diversos propósitos: i. os próprios moradores da Ilha Grande, contribuindo para autoestima e engajamento dos jovens; ii. o público em geral das histórias, possíveis turistas; iii. os representantes de outras comunidades e stakeholders interessados em projetos similares de turismo de base comunitária. Cada segmento tem suas possibilidades de engajamento. Para estes últimos, o website (ilhagrande.website) traz ainda uma série de conteúdos específicos. Em função desse público amplo, não familiarizado com o campo das narrativas interativas, a equipe optou por trabalhar com vídeos seriados, facilmente compartilhados via mídias sociais e acessíveis por telefones celulares, amplamente usados por jovens e moradores da Ilha Grande. Os vídeos foram realizados em paralelo com outras ações nas comunidades da ilha e compartilhados como uma websérie na página do facebook (facebook.com/IGwebdoc).
Em 2015, a equipe de filmagem dos vídeos esteve com os três guias turísticos comunitários nas diversas praias da Ilha Grande, convivendo com as pessoas, se hospedando e comendo em restaurantes, pousadas e campings. Nessas visitas, foi realizada parte das oficinas de fotografia e vídeo participativo com os jovens das comunidades pelo Voz Nativa. Os jovens faziam seus próprios vídeos e participavam das escolhas da produção da equipe. Os vídeos participativos acabaram não sendo incorporados ao documentário interativo em função dos recursos limitados e da prioridade em se atingir um público mais amplo, fora da Ilha Grande. Essa escolha justifica a opção pelo modo de interatividade hipertextual. No entanto, os vídeos participativos eram projetados pelas noites nas comunidades visitadas pela equipe, consolidando a divulgação e engajamento dos jovens locais.
Nas negociações entre a lógica da eficiência da estratégia de comunicação e o cultivo da fertilidade, a combinação entre a limitação de recursos e a necessidade de se alcançar um público mais amplo foi decisiva para escolha da estrutura narrativa e da interatividade hipertextual, baseada em uma série de vídeos compartilháveis pelas mídias sociais. Em outros termos, o propósito e estratégia foram decisivos na concepção do dispositivo. Por outro lado, a escolha dos vídeos serem sobre personagens e histórias foi uma demanda pela autonomia da narrativa interativa e por uma aposta no maior envolvimento dos interatores. De fato, os impactos nas mídias sociais foram surpreendentes para toda a equipe. Os vídeos tiveram uma média de 20 mil visualizações e 300 compartilhamentos no Facebook, o que para uma série de documentário é bastante alto. Esses números não contam com o desempenho surpreendente do vídeo Din Din (Provetá), que viralizou, alcançando 10 milhões de visualizações no Facebook e repercutindo a história da relação entre João e seu pinguim de estimação pela internet e em diversos canais de televisão do Brasil, EUA, Europa, Ásia e Oceania. A página do projeto atingiu 26 mil curtidas, ou seguidores. E o projeto também teve repercussão na mídia imprensa, em jornais.
Grande parte do público dos vídeos, entretanto, não interagiu com o documentário interativo. E apenas uma pequena parte pode ser considerada como possíveis turistas de base comunitária. Os impactos dos vídeos não podem ser diretamente associados com difusão e persuasão da importância do debate e da alternativa do TBC entre aqueles que não conheciam antes essa modalidade de turismo. Assim, a escolha por história garantiu uma fertilidade e uma divulgação maior para o dispositivo, mas não é possível afirmar até que ponto contribuíram para a função social de persuasão da importância do debate sobre TBC. Por outro lado, na Ilha Grande, os resultados sobre as iniciativas de base comunitária não foram até hoje levantados de forma sistemática ou medidos. De qualquer forma, a partir do contato direto com os moradores, a equipe avalia que o documentário interativo teve uma importância fundamental no sentido de catalisar as ações do projeto como um todo e consolidar a auto estima em relação à cultura local e a confiança na viabilidade das iniciativas de base comunitária. Essas impressões qualitativas parecem reforçar os argumentos de Flyn (2013) no sentido de se buscar formas qualitativas e quantitativas de mensuração dos impactos e resultados que reflitam as aspirações sociais e artísticas dos documentários, mas esse debate fica para um próximo ensaio.
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Filmografia
Dormíamos, despertamos (2012), de Domigo, Quiñones, Hirota e Linares.
Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho.
Life in a Day (2001), de Mc Donald.
100 Miradas (2013), de Borregón.
Documentários Interativos
Bear 71, de Jeremy Mendes e Leanne Allison.
Half the Sky: Turning Oppresion into Oportunity for Women Worldwide (2012), de Nicholas Kristof e Sheryl WuDunn.
Hollow: An interactive documentary (2012), de McMillon.
Highrise, de Katerina Cizek.
The Thousand Tower (2009), Out of my Window (2010), One Millionth Tower (2011), A Short History of Highrise (2014), Universe Within. Digital Lives in the Global Highrise (2015).
Ilha Grande: cada praia, uma ilha; cada ilha, uma história (2015), de André Paz.
Mapping Main Street (2010), de Oehler, Shapins e Burns.
Question Bridge: Black Males (2011), de Johnson, Willis, Ross e Sinclair.
One For Ten (2013), de Francome e Pizzey.
Proyecto Quipu, de Court, Lerner e Melo.
The Dream is Now (2013), de Guggenheim.
0 responsables (2013), de Badía, Fabra, Peris y Signes
18 Days In Egypt (2011), de Jigar Mehta e Yasmin Elayat.
[1] Gifreu (2015: 1160), por exemplo, define ativismo como a “la acción integrada de personas para conseguir câmbios sociales, políticos, económicos o ambientales.” O autor aponta a continuidade desse viés presente na tradição do documentário audiovisual e destaca, por exemplo, o programa Chalenge For Change: Activist Documentary, do National Film Board.
[2]Conforme Paz e Klinger (2011), sobre os documentários de dispositivo no Brasil, essa produção fora prenunciada por Santo Forte (1999), de Eduardo Coutinho, e abarcou partir dos anos 2000 projetos marcados pela interseção com projetos mais próximos da vídeo-arte e das artes plásticas (Rua de Mão Dupla (2004), Acidente (2006), de Cao Guimarães e Pablo Lobato, ensaios mais subjetivos (Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci, Um passaporte húngaro (2002), de Sandra Kogut e 33 (2003) de Kiko Goifman), e mais interativos (Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007), Moscou (Eduardo Coutinho, 2009), Pan-cinema permanente (Carlos Nader, 2008) e Filmefobia (Kiko Goifman, 2009)).
[3]Como Paz e Klinger (2011) e Paz e Salles (2013; 2015), entende-se dispositivo em um sentido amplo a partir da apropriação e redescrição do conceito de Foucault, que representa um conjunto específico de campos de força e elementos heterogêneos, técnicos, arquitetônicos, discursivos, afetivos, filosóficos, morais.
[4] Para Flusser (2002/2007/2008), no universo da imagem técnica, novas formas de pensamento precisam, por um lado, buscar configurações singulares de suas práticas que alternam recursos textuais e imagéticos de linguagem e incorporam a experiência estética. Por outro, requer práticas de realização e recepção que se diferenciam bastante da escrita e leitura individual, solitária e silenciosa dos textos abstratos modernos.
[5] O projeto foi desenvolvido, produzido e dirigido pelo autor deste ensaio.
[6] O Voz Nativa realizou 48 cursos, totalizando oficialmente 677 horas/aula em 7 comunidades da Ilha Grande. Durante dois anos foram 1.100 alunos inscritos, com 72% de aproveitamento dos cursos. O projeto contratou professores de inglês moradores da Ilha Grande para formar três turmas em turnos diferentes, oferecendo Inglês para Conversação em Turismo, totalizando mais de 450 horas/aula na Vila do Abraão. Foram feitos ainda: a) 10 edições de jornais comunitários impressos, com 5.000 exemplares cada; b) 5 livros sobre memória e cultura local com 1000 exemplares cada; c) 3 Encontros Voz Nativa, uma participação na Semana do Meio Ambiente e uma exposição fotográfica do #Ilhagram.
[7] Uma tecnologia social sempre considera a realidade local e está, de forma geral, associada a formas de organização coletiva, representando soluções para a inclusão social e melhoria da qualidade de vida (Dagnino, 2004; Lassance, 2004).